Análise/Vladimir Safatle | Fora de casa
O sonho da classe média alta
de investir em imóveis incentiva a especulação e impede parte da população de
ser dona de seu espaço
Nos últimos meses,
movimentos sociais como o MTST foram capazes de colocar na pauta do debate a
face segregadora do desenvolvimento econômico brasileiro. Os últimos anos
demonstraram como o crescimento normalmente se paga com o aumento da exclusão
nas grandes cidades.
Submetida à pressão
desenfreada da especulação imobiliária, aos interesses de empreiteiras que
estão entre as maiores financiadoras de campanhas eleitorais, nossas cidades
passaram nos últimos anos por um processo de valorização imobiliária, cujo
maior resultado foi a expulsão de famílias para lugares cada vez mais
distantes, por não conseguirem mais arcar com os gastos excessivos de aluguel.
Em muito contribuiu o
advento de grandes torneios, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, com suas
remoções de até 250 mil pessoas, a fim de permitir que as cidades fossem mais
facilmente moldadas aos interesses das incorporadoras.
Como bem lembrou Guilherme
Boulos em artigo recente, dados da Fundação João Pinheiro demonstram que, entre
2007 e 2013, o número de famílias submetidas a um gasto excessivo com aluguéis
aumentou em 35,3%. Atualmente, são 2,6 milhões de famílias nessa situação.
Dessa forma, cidades como
São Paulo e Rio de Janeiro estão entre algumas das mais caras do mundo, mesmo
que sua infraestrutura de transporte público, espaços culturais e serviços
capazes de garantir qualidade de vida sejam simplesmente deploráveis.
Eis algo que não deveria nos
soar estranho. Vivemos em um país de rentistas, ou seja, um lugar no qual o
sonho da classe média alta é “investir em imóveis”, e, com isso, auxiliar no
infinito processo de especulação que impede grande parte da população
brasileira de ser dona do espaço no qual mora. “Investir em imóveis” é um dos
melhores exemplos da racionalidade de uma classe improdutiva que procura apenas
rentabilizar ao máximo seus rendimentos sem que eles precisem passar por
processo produtivo algum.
Uma verdadeira política
preocupada com a questão habitacional começaria por impedir que um bem social
como os imóveis se transformasse em ativo preferencial de investimento. Isso
poderia ser feito ao impedir que empresas e particulares tenham mais de três ou
quatro imóveis na mesma cidade.
Estamos diante da velha
situação na qual o direito à propriedade de alguns destrói o direito de
propriedade de muitos. Alguém com 60 ou 70 imóveis é uma aberração que apenas
entrega as chaves de nossas cidades para a pressão especulativa desenfreada.
Por outro lado, movimentos
de ocupação, principalmente de imóveis e terrenos vazios, são uma forma de
civilizar nosso espaço urbano. Mesmo países liberais têm leis que permitem ao
poder público confiscar, em procedimentos rápidos, ou forçar imediatamente a
venda de propriedades vazias por longo período de tempo, a fim de
transformá-las em habitações para sem-teto.
No entanto, as cidades
brasileiras convivem com edifícios inteiros desocupados durante anos, tendo em
vista a mera especulação. Nesse sentido, as ocupações são uma modalidade de
pressão por justiça social e por aplicação da cláusula constitucional que não
hipostasia o direito de propriedade, submetendo-o à função social.
Essa discussão serve para
lembrar como não há, no Brasil, a compreensão do espaço urbano como espaço
comum. A cidade não é um lugar para se habitar, mas uma ocasião para lucrar. O
desenvolvimento urbano não visa dar à nossas cidades uma característica mais
humana e, nesse sentido, o ocaso do planejamento urbano é apenas uma das
consequências mais visíveis desse processo.
O desenvolvimento de nossas cidades é apenas mais um setor no qual se vê claramente como vivemos sob uma verdadeira ditadura de setores econômicos que se associam ao poder público, a fim de criar uma relação incestuosa de interesses e dependência. Quem manda nas cidades? Eis uma pergunta que todos sabemos claramente como responder.
Dessa forma, a migração do
campo para a cidade de alguns dos nossos movimentos sociais mais combativos é
apenas a consequência natural da compreensão de como o processo de espoliação
liga zona urbana e zona rural.
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