Opinião | Deus é gay?
Por Frei Betto
"Jesus transitou, sem discriminação, entre o mundo dos
‘pecadores’ e dos ‘virtuosos’. Agora, o papa Francisco ousa se erguer contra o
cinismo
Nunca antes na história da Igreja um papa ousou, como
Francisco, colocar a questão da sexualidade no centro do debate eclesial:
homossexualidade, casais recasados, uso de preservativo etc. O Sínodo da
Família, realizado no Vaticano, só dará sua palavra final sobre esses temas em
outubro de 2015, quando voltará a se reunir.
Quem, como eu, transita há décadas na esfera eclesiástica
sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos.
Por que não gozarem, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de
se assumir como tal? Devem permanecer “no armário”, vitimizados pela Igreja e,
supostamente, por Deus, por culpa que não têm?
É preciso reler o Evangelho pela ótica gay, como pela
feminista, já que a presença de Jesus entre nós foi lida pelas óticas aramaica
(Marcos); judaica (Mateus); pagã (Lucas); gnóstica (João); platônica
(Agostinho) e aristotélica (Tomás de Aquino).
A unidade na diversidade é característica da Igreja. Basta
lembrar que são quatro os evangelhos, não um só: quatro enfoques distintos
sobre Jesus. Até a década de 1960, predominava no Ocidente uma única ótica
teológica: a europeia, tida como “a teologia”. O surgimento da Teologia da
Libertação, com a leitura da Palavra de Deus pela ótica dos pobres, causa ainda
incômodo aos que consideram a ótica eurocentrada como universalmente ortodoxa.
Diante dos escândalos de pedofilia, dos 100 mil padres que
abandonaram o sacerdócio por amor a mulheres, e da violência física e simbólica
aos gays, Francisco ousa se erguer contra o cinismo dos que se arvoram em
“atirar a primeira pedra.”
Como Jesus, a Igreja não pode discriminar ninguém em razão de
tendência sexual, cor da pele ou condição social. O que está em jogo é a
dignidade da pessoa humana, o direito de casais gays serem protegidos pela lei
civil e educarem seus filhos na fé cristã, o combate e a criminalização da
homofobia, um grave pecado.
A Igreja não pode continuar cúmplice e, por isso,
acaba de superar oficialmente a postura de considerar a homossexualidade um
“desvio” e “intrinsecamente desordenada”.
A dificuldade de a Igreja Católica aceitar a plena cidadania
LGTB se deve à sua tradição bimilenar judaico-cristã, que é heteronormativa.
Por isso, os conservadores reagem como se o papa traísse a Igreja, a exemplo do
que fizeram no passado, quando se recusaram a aceitar a separação entre Igreja
e Estado; a autonomia das ciências; a liberdade de consciência; as relações
sexuais, sem fins procriativos, dentro do matrimônio; a liturgia em língua
vernácula.
Deus é gay? “Deus é amor”, diz a Primeira Carta do apóstolo
João, e acrescenta “o amor é de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e
conhece a Deus.” E, se somos capazes de nos amar uns aos outros, “Deus
permanece em nós.”
Por ser a presença de Deus entre nós, Jesus transitou, sem
discriminação, entre o mundo dos “pecadores” e dos “virtuosos”.
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Frei Betto |
Não apedrejou a
adúltera; não fugiu da prostituta que lhe enxugou os pés com os cabelos; não
negou a Madalena, que tinha “sete demônios”, a graça de ser a primeira
testemunha de sua ressurreição. Jesus também não se recusou a dialogar com os
“virtuosos” — aceitou jantar na casa do fariseu; acolheu Nicodemos na calada da
noite; dialogou sobre o amor samaritano com o doutor da lei; propôs ao rico
que, “desde jovem” abraçava todos os mandamentos, a fazer opção pelos pobres.
Sobretudo, ensinou que não é escalando a montanha das
virtudes morais que alcançamos o amor de Deus. É nos entregando a esse amor,
gratuito e misericordioso, que logramos fidelidade à Palavra.
Fé, confiança e fidelidade são palavras irmãs. Têm a mesma
raiz. E a vida ensina que João é fiel a Maria, e vice-versa, não porque temem o
pecado do adultério, e sim porque vivem em relação amorosa tão intensa que nem
cogitam a menor infidelidade."
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