OPERAÇÃO LAVA JATO | Escrúpulos jogados às favas
Por Sylvia
Debossan Moretzsohn em 17/02/2015 na edição 838 - Observatório da Imprensa | Quem
conhece como funciona uma redação de jornal não se surpreenderia com a
situação.
A surpresa é quanto ao procedimento: tradicionalmente, as
ordens para manipular o noticiário, por mais abjeção e revolta que causem,
costumam ser verbais. Daí o espanto diante da notícia de que a direção de
jornalismo da Globo enviou mensagem escrita determinando o corte de qualquer
referência ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nas mais recentes
denúncias da Operação Lava Jato, que investiga a corrupção na Petrobras.
O e-mail com essa orientação foi inicialmente divulgado no
blog de Luís Nassif (ver aqui), no domingo (8/2), e logo se espalhou pela internet:
“(...) a diretora da Central Globo de
Jornalismo, Silvia Faria, enviou um e-mail a todos os chefes de núcleo com
o seguinte conteúdo:
‘Assunto: Tirar trecho que menciona FHC nos VTs sobre Lava a
Jato
Atenção para a orientação
Sergio e Mazza: revisem os VTs com atenção! Não vamos deixar
ir ao ar nenhum com citação ao Fernando Henrique’.”
Segundo Nassif, “o recado se deveu ao fato de a reportagem
ter procurado FHC para repercutir as declarações de Pedro Barusco [ex-diretor
da Petrobras, um dos que fizeram acordo de delação premiada] – de que recebia
propinas antes do governo Lula”.
As declarações constam de depoimento prestado em novembro do
ano passado, mas apenas agora liberado. Barusco diz que começou a receber
propina “em 97 ou 98”, mas esse trecho não apareceu imediatamente nas
reportagens dos canais da Globo. O caso recebeu tratamento diferente no Jornal
Nacional e nos jornais da GloboNews.
Recapitulando
As primeiras reportagens foram ao ar na tarde de quinta-feira
(5/2). Na GloboNews, a primeira matéria (ver aqui) não faz referência ao período anterior aos governos petistas, mas à
noite, no Jornal das Dez (aqui),
essa menção é explícita e repetida no dia seguinte.
Na tarde do dia 6/2, em
matéria cujo link chama para o título “Ex-gerente da Petrobrás diz que começou
a receber propina em 1997” (aqui),
a repórter lembra que “na época o país era comandado pelo PSDB”, mas ressalva
que, sobre esse período, “o ex-gerente da Petrobras não deixa claro se recebeu
propina a pedido de alguém ou de algum partido político”.
Na longa reportagem, de quase seis minutos, em que começou a
tratar do caso, em 5/2, oJornal Nacional utiliza seus habituais recursos
de infografia para detalhar como funcionava o esquema denunciado por Barusco,
mas omite a referência ao período de FHC. Pelo contrário, destaca, no
infográfico, o pagamento de propina “em 90 contratos, entre 2003 e 2013, nos
governos Lula e Dilma”.
Apenas no dia seguinte, em reportagem um pouco menos longa
(quatro minutos e meio, ver aqui), o JN menciona
que o denunciante diz ter começado a receber propina “em 97 ou 98, durante o
governo Fernando Henrique Cardoso”, mas também ressalva que ele “não esclareceu
se o dinheiro recebido naquela época era destinado ao PSDB, partido do então
presidente da República, ou a alguma aliança que o apoiava”.
No sábado (7/2), o jornal anuncia que Fernando Henrique
comentou “por escrito” o depoimento de Barusco (ver aqui), eximindo o seu governo de responsabilidade na história.
Deixando rastros
As reportagens informaram que os envolvidos cuidavam de não
deixar rastros. Tampouco o tipo de ordem que partiu da direção de jornalismo da
Globo deveria deixá-los. Mas deixou.
Seria improvável pensar que, nesses tempos de internet, o
e-mail não vazaria. Mesmo considerando a hesitação dos jornalistas em denunciar
o que ocorreu, por medo de perder o emprego.
Assim, a divulgação do e-mail só complicou as coisas para a
empresa, ao menos em relação ao público minimamente atento, quando o Jornal
Nacional pediu desculpas, em sua edição de segunda-feira (9/2, ver aqui),por ter insinuado que um dos ex-diretores da Petrobras, Guilherme
Estrella, estaria comprometido no esquema de propina, quando o próprio
denunciante o isentava.
Outras coisas viraram motivo de galhofa: por exemplo, a
vinheta da GloboNews sobre o pedido do PT de “investigações na Lava Jato no
período que antecede o governo petista”. Como disse o jornalista Eduardo Souza
Lima em seu mural no Facebook, “não é nada disso, pessoal, eles só quiseram
abreviar para caber na chamada. Afinal, ‘período que antecede o governo
petista’ é bem mais curto do que ‘governo FHC’.”
Outro erro – que provavelmente foi mesmo um singelo erro de
digitação, como tantos os que ocorrem e não deveriam ocorrer, pelo menos não
com tanta frequência – ganhou outra conotação durante a cobertura do acidente
com o navio-plataforma da Petrobras, na quarta-feira (11/2), em Aracruz,
Espírito Santo: ao recapitular outros acidentes, a GloboNews divulgou, também
em vinheta, que a explosão e o afundamento da plataforma P-36, na Bacia de
Campos, que deixou 11 mortos, tinha ocorrido em 2011 (governo Dilma, portanto),
e não em 2001 (portanto, governo FHC).
Pela culatra
Ao anunciar, em 11/2, o pedido da liderança do PT na Câmara
para a ampliação das investigações da CPI da Lava Jato para o período anterior
a 2003, considerando o depoimento de Barusco, o Jornal Nacional conclui
a nota dizendo que “o Ministério Público Federal informou que se pauta pela
isenção em suas investigações e não faz distinção de datas, prazos ou
gestores”.
A mesma isenção deveria pautar o jornalismo, como as próprias
empresas fazem questão de reiterar em seus princípios editoriais.
Sabemos que nunca foi assim, mas quando há um documento
escrito apontando na direção oposta a denúncia quanto à manipulação é mais
contundente. Assim, o e-mail disparado pela diretora de jornalismo da Globo
teve efeito contrário e só ajudou a piorar a imagem da empresa, pelo menos
entre os que têm alguma capacidade de discernimento e não se contentam com a
primeira informação que recebem.
Mas, de fato, não é a primeira vez. Em março de 2010, quando
representantes das empresas de comunicação se reuniram para discutir a terceira
versão do Plano Nacional de Direitos Humanos, a então presidente da Associação
Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, afirmou que os meios de comunicação
“estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição
está profundamente fragilizada”.
Tratava-se de uma defesa do que as empresas entendem por
liberdade de imprensa, por oposição à proposta do governo – e de muitos
movimentos sociais, há muitos anos – de “controle social da mídia”.
Assumir-se como porta-voz da oposição significava, evidentemente,
abandonar a posição de fiel da balança que as empresas de comunicação se
arrogam, pelo menos desde a redemocratização.
A recente orientação para excluir qualquer menção ao
ex-presidente Fernando Henrique do noticiário sobre corrupção na Petrobras não
deveria mesmo causar espanto. Mas não deixa de ser uma forma de mandar às favas
todos os escrúpulos de consciência.
***
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da
Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel
dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas,
2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum
ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
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